CANNABIS MEDICINAL

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DOS USOS TERAPÊUTICOS

Sendo um dos primeiros cultivares da humanidade a cânabis se diversificou a partir da experiência humana. A nossa relação com a planta vem de tempos imemoriais. Há cerca de 12 mil anos, pescadores utilizavam as resistentes fibras da planta para produzirem redes de pesca. A Ásia Central, Mesopotâmia e Norte da África abrigaram povos ancestrais que consumiram a cânabis e suas resinas para finalidades terapêuticas. Relatos pré-históricos do emprego dos canabinoides para alívio de dores de diferentes origens são recorrentes e encontrado em diversas culturas desde tempos imemoriais.

No século XIX médicos e pesquisadores utilizavam e relatavam múltiplas possibilidades para as diversas apresentações farmacêuticas que continham canabinoides. Essas preparações apresentavam diferentes concentrações e eram indicadas para uma série de enfermidades que preocupavam os órgãos de saúde da época. Ao contrário de outros componentes derivados do ópio e da coca que apresentam interesses na prática terapêutica, os canabinoides presentes na cânabis foram isolados e identificados apenas na segunda metade do século XX. Esse trabalho, que teve imensa contribuição do Prof. Raphael Mechoulam da Universidade Hebraica de Jerusalém, impulsionou as pesquisas com a cânabis e seus derivados para fins terapêuticos.

No Brasil, alguns relatos apontam que a cânabis chegou nesse território pelas mãos das pessoas de diferentes etnias africanas que vinham escravizadas pelos europeus que aqui ocuparam. Seus usos ritualísticos e terapêutico precederam o cultivo de cânabis pela coroa portuguesa. Territórios no sul e norte do país se destacaram na produção das fibras de cânhamo. As propriedades da cânabis para fins terapêuticos também eram rotineiras e empregadas das mais variadas formas. A venda em farmácias, a presença da cânabis na farmacopéia brasileira e seus usos tradicionais estavam permitidos até a década de 30 do século passado. O processo de proibição da cânabis no Brasil também aponta para o controle étnico. A primeira lei que restringe seu consumo no país ocorreu no município do Rio de Janeiro em 1830 onde ficou proibido o “pito do pango”, que era considerado um hábito praticado majoritariamente por pessoas negras. Além da prática cultural e tradicional do consumo da cânabis, suas propriedades terapêuticas também foram combatidas por leis que se internacionalizaram na tentativa de erradicar a cânabis do planeta. No entanto, essa estratégia falhou solenemente, a cânabis resistiu e se expandiu. Hoje muitos países, inclusive o nosso, vêm mudando suas leis e resgatando as propriedades terapêuticas da cânabis.

A CÂNABIS E OS FITOCANABINOIDES

A cânabis é uma planta de origem asiática bem-adaptada aos mais diversos biomas do planeta e que apresenta uma grande variabilidade na expressão das mais de 500 moléculas descritas que a compõe. Uma grande família com mais de 100 membros são os canabinoides, substâncias lipídicas expressas de maneira muito distinta de acordo com a variedade da planta. Ainda existem os flavonoides e terpenoides, substâncias essas que exercem ações em nosso organismo e que compõe o aroma complexo das variedades da cânabis. Alguns especialistas sugerem que existam pelo menos três grandes famílias de cânabis: (i) aquelas que expressam altos teores de THC (∆9-tetrahidrocanabinol) e baixos de CBD (canabidiol); (ii) as que apresentam altos teores de CBD e baixos de THC; e (iii) plantas híbridas que poderiam expressar diferentes proporções destes dois canabinoides de maior proporção na planta. Esses fitocanabinoides são capazes de interagir com os receptores do sistema endocanabinoide, atuando de maneiras distintas. O THC atua ativando os receptores canabinoides de maneira parcial enquanto o CBD atua em direção oposta invertendo a atividade destes receptores, o que por vezes configura em efeito contrário ao desencadeado pelo THC.

Essa correlação, no entanto, é um pouco mais complexa, o THC pode apresentar efeito paradoxal e proporcionar efeitos antagônicos, de acordo com a dose. Em baixas doses, o THC pode proporcionar efeitos antiepilépticos e ansiolíticos. E em altas doses, ele pode agravar quadros de epilepsia e ansiedade. Além disso, o THC é capaz de potencializar alguns efeitos do CBD e o CBD, por sua vez, pode reduzir o aparecimento de eventos adversos proporcionados pelo THC, como aumento da ansiedade, psicose ou taquicardia.

A ação conjunta dos canabinoides com as outras moléculas presentes na cânabis proporciona uma atuação sinérgica que resulta em efeito diferente daqueles proporcionados pelas moléculas isoladas, esse efeito é chamado de comitiva ou entourage. Com o passar dos anos e aperfeiçoamento da tecnologia empregada nas pesquisas biomédicas, e ao final do século XX, o sistema endocanabinoide foi descrito.

SISTEMA ENDOCANABINOIDE

O sistema é parte constituinte de nosso organismo e de muitos animais e cumpre papel fundamental no funcionamento do corpo.

O sistema endocanabinoide é capaz de regular atividades fisiológicas e metabólicas, podendo alterar funções psicológicas e imunológicas, relacionando-o diretamente a inúmeras enfermidades que afetam milhares de pessoas no Brasil e no mundo. Esse sistema é composto por neurotransmissores, que também são chamados de endocanabinoides, dois desses são mais conhecidos e estudados, são eles a Anandamida e o 2-AG (2-araquidonoilglicerol).

Esses neurotransmissores atuam em diversos órgãos e sistemas com maior intensidade no sistema nervoso central. A ação destes endocanabinoides ocorrem a partir da interação com receptores. Existem dois receptores canabinoides descritos: o CB1 e o CB2. As enzimas de síntese e degradação dos endocanabinoides e transportadores destas moléculas completam o sistema. O sistema endocanabinoide é capaz de interagir com diversos outros sistemas de neurotransmissão sendo capaz de interferir direta ou indiretamente a atividade desses sistemas.

Além dos endocanabinoides, os fitocanabinoides presentes na cânabis também são capazes de atuar no sistema endocanabinoide, nos receptores e nas enzimas. Existem diferenças importantes na expressão dessas moléculas: endocanabinoides, receptores e enzimas; em cada indivíduo a presença destas moléculas ao longo do organismo ocorre de maneira única, fato que pode determinar um tratamento personalizado.

As alterações no sistema endocanabinoide podem estar relacionadas com o aparecimento de algumas enfermidades e seus sintomas. Compreender as singularidades e complexidade relacionadas ao sistema endocanabinoide e a interação com as variedades da cânabis é essencial para compreender seus efeitos.

USOS TERAPÊUTICOS

O uso de cânabis para fins terapêuticos são diversos e estão relacionados com a complexidade e amplitude do sistema endocanabinoide e seu papel funcional em nosso organismo. Além disso, as variedades da cânabis, capazes de apresentar diferentes perfis moleculares, podem proporcionar uma miríade de efeitos, inclusive, antagônicos que podem ser considerados terapêuticos ou colaterais a depender do indivíduo que consome e suas singularidades.

Existem estudos consistentes que comprovam a eficácia e segurança do tratamento de epilepsia resistente, dor cônica, espasmos em decorrência da esclerose múltipla, náusea e vômitos motivados pelo tratamento quimioterápico para o tratamento de cânceres. Os canabinoides apresentam comprovação de aplicação terapêutica para estas enfermidades. No entanto, inúmeros estudos e linhas de pesquisa vêm demonstrando um potencial bastante grande para o emprego da cânabis e seus componentes para outras enfermidades.

Para determinadas enfermidades um planejamento terapêutico que inclua no rol de práticas o uso de canabinoides lançam mão de um bom adjuvante aos tratamentos de referência, permitindo uma redução dos sintomas associados à diversas enfermidades, sobretudo, que afetem o sistema nervoso central, e que podem encontrar na terapia com canabinoides uma melhora no sono, apetite, humor, dor, motivação e outros fatores associados ao bem estar e qualidade de vida que são essenciais para a reabilitação de inúmeras enfermidades.

Evidentemente, todo tratamento deve ser acompanhado e supervisionado por profissional competente e habilitado, visto que nenhuma terapia é livre de riscos e eventos adversos. É preciso ter cautela e conhecimento das interações medicamentosas, dosagens, perfis de canabinoides, efeitos esperados dentre outros fatores que reforçam o caráter singular e personalizado do planejamento terapêutico.


Texto por: Renato Filev - PhD - Bacharel em Ciências Biológicas: Modalidade Médica. Doutor em Neurociências, ambos pela Universidade Federal de São Paulo. Pós-doutorando pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da mesma instituição. Pesquisador do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. Coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Pesquisador da CANAPSE - Associação de Canabiologia, Pesquisa e Serviços.

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